sábado, 29 de novembro de 2008

Primeiro Encontro

A luz da lua banhava toda a rua, e o meu passo cansado e desajeitado precisava do teu equilíbrio. Minha boca precisando de um beijo, cantando Lulu Santos, enquanto eu lembrava do nosso primeiro encontro, nosso primeiro indício do amor.

Tua blusa era perfeita, e apesar de tua falta de memória incrível, ela era lilás e estampada na frente. Sim, tenho certeza.

Marcamos uma festa em uma danceteria que não existe mais. Cansamos de tanto nos beijar e dançar. Foi quando tiraste o salto alto e revelaste tua estatura para mim.

Nunca mais cansei de te beijar!

Horas

Há alguns anos, numa grande enchente na Argentina um anônimo escreveu isto:

COMEÇAR DE NOVO

Eu tinha medo da escuridão
Até que as noites se fizeram longas e sem luz
Eu não resistia ao frio facilmente
Até passar a noite molhado numa laje
Eu tinha medo dos mortos
Até ter que dormir num cemitério
Eu tinha rejeição por quem era de Buenos Aires
Até que me deram abrigo e alimento
Eu tinha aversão a Judeus
Até darem remédios aos meus filhos
Eu adorava exibir a minha nova jaqueta
Até dar ela a um garoto com hipotermia
Eu escolhia cuidadosamente a minha comida
Até que tive fome
Eu desconfiava da pele escura
Até que um braço forte me tirou da água
Eu achava que tinha visto muita coisa
Até ver meu povo perambulando sem rumo pelas ruas
Eu não gostava do cachorro do meu vizinho
Até naquela noite eu o ouvir ganir até se afogar
Eu não lembrava os idosos
Até participar dos resgates
Eu não sabia cozinhar
Até ter na minha frente uma panela com arroz e crianças com fome
Eu achava que a minha casa era mais importante que as outras
Até ver todas cobertas pelas águas
Eu tinha orgulho do meu nome e sobrenome
Até a gente se tornar todos seres anônimos
Eu não ouvia rádio
Até ser ela que manteve a minha energia
Eu criticava a bagunça dos estudantes
Até que eles, às centenas, me estenderam suas mãos solidárias
Eu tinha segurança absoluta de como seriam meus próximos anos
Agora nem tanto
Eu vivia numa comunidade com uma classe política
Mas agora espero que a correnteza tenha levado embora
Eu não lembrava o nome de todos os estados
Agora guardo cada um no coração
Eu não tinha boa memória
Talvez por isso eu não lembre de todo mundo
Mas terei mesmo assim o que me resta de vida para agradecer a todos
Eu não te conhecia
Agora você é meu irmão
Tínhamos um rio
Agora somos parte dele
É de manhã, já saiu o sol e não faz tanto frio
Graças a Deus
Vamos começar de novo.

Anônimo

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Homenagem

Olhei nos teus olhos vermelhos, que a câmera insistiu em fazer triste apesar do sorriso voluntário e sincero no rosto. Vi o que somente eu podia ver.

Vi a dor de ser filha única, não por genealogia. Vi o peito apertado e as costas arqueadas de tanto peso. Vi uma família em desordem e uma cabeça atormentada pelo medo de nunca satisfazer as aspirações da mãe. Vi uma criança triste que não conhecia o pai. Vi a falta de afago na nuca e mãos com sede de toque, carinho e fúria.

E por sinceros minutos eu senti pena. E tão somente nestes poucos minutos.

Repentinamente surgiu em minha mente uma leoa de face amistosa, rodeada de família e carinhos. Surgiu em minha mente a pessoa que pulou para fora de um círculo de inimizades e fundou sua própria filial da felicidade. Surgiu a pessoa que tenta quebrar todo dia o ciclo do ódio. E vi a pessoa que um dia afagou os meus ombros e disse:

- Eu te perdôo.

E senti orgulho sincero por horas. Dias e vidas.

Cheiro

Na Correria de juntar as peças do que faltava para o meu dia, tropecei no teu casaco de lã felpudo, aquele que tanto gostas. Olhei uma vez e tentei, olhei mais uma e tomei nas mãos, irresistível gesto de apego.

O teu perfume, impregnado na peça como essência de carvalho, me deu momentos de delírio olfativo e me trouxe a memória o teu corpo, o teu rosto e o teu amor.

Aquele cheiro, agora impregnado na memória, me trouxe o teu sorriso pelo resto do dia.